Jéssica Silva, a menina de bom coração que se tornou na primeira portuguesa a vencer a Champions

Na adolescência, Jéssica Silva pensava que “só havia futebol profissional para os homens”. Só aos 14 anos descobriu que, afinal, também havia clubes com equipas femininas, e aos 25 tornou-se na primeira jogadora portuguesa a vencer a Liga dos Campeões, ao serviço do Lyon. Na vida como no desporto, a atacante soube sempre driblar as dificuldades até se tornar numa referência da modalidade. “Sinto que não jogo futebol só para mim. O facto de sentir que há miúdas e até mesmo miúdos que me veem como referência dá-me uma energia e motivação enormes para fazer aquilo que gosto”, confessou à Rádio Renascença.

Hoje, a vida sorri a Jéssica, mas todas as rosas têm os seus espinhos. Os da jovem prenderam-se com uma infância difícil, passada entre Vila Nova de Milfontes, onde nasceu, Águeda, para onde se mudou com sete anos, e o Porto, onde viveu depois de a mãe ter voltado para o Alentejo. Pelo meio, descobriu o futebol. O feminino, porque a bola faz-lhe companhia desde que se conhece. “Sempre tive aquela vontade de ver só a bola e a minha mãe diz que eu já tinha jeito quando era pequena. Jogava com as laranjas porque na verdade nem sempre tive hipóteses ou possibilidades para ter uma bola de futebol em casa. Tinha de me arranjar de alguma forma e eram as laranjas. Ou ia buscar os jornais e fazia bolas com fita-cola”, chegou a contar ao Observador.

Em Águeda, praticou salto em comprimento na escola, lembra Hernâni Moreira, que era diretor da UR Ferreirense quando Jéssica chegou ao clube. “A atleta que a motivou a vir chama-se Ju, está agora no Condeixa. Na altura, o pai dela, o senhor Romário, vinha a todos os treinos. Ele funcionava praticamente como um diretor. As raparigas que mostravam jeito e vontade vinham com ele”, conta. Aos 14 anos, Jéssica dava o primeiro passo para cumprir um sonho que nunca escondeu. “Ela treinava com muito afinco. Era muito rápida, tinha muita habilidade, como ainda hoje se nota, e muita vontade de aprender”, recorda o dirigente, que lhe elogia a personalidade “muito alegre, simpática, brincalhona”.

Os dois primeiros anos de Jéssica Silva no futebol foram passados em Ferreiros, uma aldeia pequena em Anadia, onde não demorou a dar nas vistas. “Começou rapidamente a ganhar o seu espaço. Tinha uma habilidade natural muito grande e era muito rápida”, conta o diretor. Nem Mónica Jorge, então selecionadora nacional, ficou indiferente ao talento da atacante. “Ela veio ver um jogo ainda no campo do Areeiro e vaticinou que a Jéssica se tornaria numa das melhores jogadoras do mundo em poucos anos”, conta Hernâni Moreira, algo que o tempo viria a confirmar.

A maturação em Albergaria
Em 2011, Jéssica dizia adeus à UR Ferreirense para se juntar ao Clube de Albergaria, de Paula Pinho. “Quando cá chegou, ela era ainda uma menina, também no futebol”, lembra a treinadora. “Era uma jogadora em que lhe reconhecíamos imediatamente grande potencial, mas que face à pouca formação que teve, uma vez que entrou tarde no futebol, ainda tinha muitas carências técnicas e individuais e em termos de apreensão do jogo”, acrescenta. Aos 17 anos, a atacante era um diamante por lapidar. “Foi uma grande batalha minha trabalhar a técnica individual de remate e de cruzamento, porque o drible dela aliado à velocidade de execução e à explosão que já tinha… Ela é imbatível no 1 para 1”, acrescenta a técnica.

No início da última década, o Clube de Albergaria viveu anos de grande sucesso desportivo, com a chegada à final da Taça de Portugal, em 2011/2012, e o 2.º lugar no Campeonato Nacional, na época seguinte, como momentos altos. Esse foi, também, o período da afirmação de Jéssica Silva na equipa, ela que acabaria por emigrar em 2014, rumo aos suecos do Linkoping. Na época seguinte, regressou a Albergaria, antes de se juntar ao SC Braga, onde voltaria a ser vice-campeã nacional, em 2017.

“Ao sair do Clube de Albergaria, ela teve outros palcos e outras condições de trabalho. Acabou por corrigir algumas limitações, que tinham que ver com a perceção do jogo, e potenciar ainda mais o que já lhe era reconhecido na altura, pois ela fazia magia com a bola. Conseguiu equilibrar-se em prol da equipa”, acredita Paula Pinho. A treinadora irá para sempre recordar-se de Jéssica como “uma pessoa muito sensível ao que a rodeia e com um coração bom”, que nem o mais infame dos comportamentos conseguiu corromper. “Lembro-me de um jogo, no norte, em que tinha a bancada atrás do meu banco. Apercebi-me de que ela estava a ser alvo de insultos racistas. Percebi que ela ficou perturbada com a situação e pedi a um agente da autoridade para identificar o “cavalheiro” que estava na bancada a insultar a Jéssica, o que veio a acontecer. No final, a Jéssica foi confrontada por essa pessoa e aceitou o pedido de desculpas do senhor. Não lhe quis causar problemas”, recorda a treinadora.

Desde que deixou Albergaria-a-Velha, a vida de Jéssica Silva, que leva sete golos em 67 jogos pela seleção nacional, fê-la viajar até Espanha, para representar o Levante, e França, onde se encontra atualmente, ao serviço do Lyon. Apesar da distância, a relação da jogadora com Paula Pinho não esmoreceu. “O futebol é muito mais do que resultados e jogos. É algo que nos acompanha para o resto da vida pelo que acontece fora do campo”, refere a técnica, que nas vésperas do jogo da final da Champions feminina não só deu confiança à sua antiga atleta, que falhou a partida devido a lesão, como também acertou em cheio no resultado, 3-1 para o Lyon diante das alemãs do Wolfsburg.

Após a conquista, vieram os elogios. Fernando Gomes, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, fala de “um feito que nos deixa a todos orgulhosos e que é verdadeiramente inspirador, designadamente para todas as jovens que jogam futebol”. Jéssica Silva, que marcou um golo na caminhada do Lyon rumo ao quinto título europeu consecutivo, tem perfeita noção do que alcançou. “Esta conquista é, sem dúvida, o momento mais alto da minha carreira. Sempre sonhei com isto”, admitiu, à Rádio Observador.

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5 de Setembro de 2020
Rui Santos
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